Escolas de Roraima promovem iniciativas de inclusão reconhecidas nacionalmente

Primeiro, eram seis alunos. No ano seguinte, 63. Hoje são 91 venezuelanos estudando na Escola Estadual Olavo Brasil Filho, localizada na periferia de Boa Vista. O número corresponde a pouco mais de 10% do total de matrículas. E foi a chegada desta parcela de crianças e adolescentes que promoveu uma revolução na escola, que oferece turmas de Ensino Fundamental II e Médio.

A professora Simone Catão, da disciplina de Matemática, percebeu o aumento no fluxo de migrantes e que esses alunos sofriam com piadas, brincadeiras de mau gosto, bullying e xenofobia. “Eles [alunos venezuelanos] não gostam quando os chamam de veneca [termo pejorativo utilizado por alguns brasileiros]. Os alunos brasileiros falavam, mas não era com intenção de maldade. Eles reproduziam o que ouviam dos adultos em casa. Aí começamos a trabalhar essas palavras que magoam, para que não surgisse esse tipo de comentário”.

Ela, então, viu nos números o caminho para explicar aos alunos por que tantas crianças venezuelanas estavam chegando ao Brasil. Em sala de aula, tratou sobre os motivos da hiperinflação no país vizinho. “A gente foi fazer a comparação entre quanto custava uma cesta básica na Venezuela e no Brasil. Descobrimos que lá custava 29 salários mínimos e questionei: Se acontecesse no Brasil, será que a gente poderia comprar uma cesta básica?”.

A partir daí, os alunos levaram essas lições para casa e começaram a conversar com os pais e mães do porquê o fluxo migratório era tão grande. “A sociedade só ouve falar, mas não tem realmente noção. Então os alunos começaram a levar isso aos pais e perguntar ‘e se fosse você, deixaria seu filho com fome?”.

O projeto, denominado “Duas Culturas e uma Nação!”, tomou conta da escola e foi expandido para as disciplinas de Português, Espanhol, História e Geografia. O sucesso da iniciativa chegou a outras escolas, e alunos, como Yoriexi Pena, pediram transferência para a Olavo Brasil Filho. “Na escola antiga, eu sofria muito bullying por ser venezuelana. Decidi mudar para cá e fui bem acolhida. Não dá para aceitar isso [xenofobia] porque todo mundo é humano, mesmo sendo de nacionalidades diferentes”, disse a aluna de 12 anos, que há dois mora em Roraima com os pais e o irmão.

Juntos, brasileiros e venezuelanos promoveram atividades culturais e de lazer na escola e em abrigos para migrantes, arrecadaram e doaram brinquedos, criaram a cartilha “Alunos refugiados: vamos acolhê-los” e cultivaram uma horta medicinal, batizada de Shailly, em homenagem a uma aluna venezuelana que passou pelo processo de interiorização e hoje mora em São Paulo.

As estudantes brasileiras Rhamona de las Viegas e Karina Freire da Silva, ambas de 11 anos, e Emilly Murielly da Silva, de 12, auxiliam nos cuidados com a horta que leva o nome da amiga, que ainda mantém contato por celular. “A gente ajuda limpando a horta, fazendo dinâmicas e entrevistas com os alunos venezuelanos. Ainda ouvimos colegas chamando os venezuelanos de ‘veneca’ ou ‘mira’ e achamos desrespeitoso, pois queremos que eles se sintam em casa”.

“Duas Culturas e uma Nação!” rendeu muito mais do que pés de plantas medicinais na horta. O projeto concorreu, com outras 166 práticas, o Prêmio Innovare 2019 e sagrou-se vencedor na categoria Justiça e Cidadania. E ficou entre os 50 finalistas do Prêmio Educador Nota 10 – 2019, iniciativa da Fundação Victor Civita.

“No Prêmio Innovare, fomos a única escola e concorremos com projetos de grande extensão. Mas esse trabalho de combate à xenofobia é muito importante. Era coisa que a gente só lia em dicionário. Os alunos venezuelanos cresceram muito, tiveram a autoestima elevada, as notas aumentaram. Mas quem aprendeu mais fomos nós, os brasileiros, porque despertou esse sentimento de respeito, de cuidado”.

 

Bienvenidos

A faixa de Bienvenidos na entrada da Escola Municipal Nova Canaã retrata bem o desejo dos servidores dali: de acolher e integrar todos os alunos. Além do português, há placas em espanhol e em Libras por todo o prédio. “Desde o primeiro momento, identificamos todos os espaços da escola. A gente via a alegria no rosto dos pais e das crianças”, contou a gestora Wera Lúcia Marques Sousa sobre o projeto interdisciplinar “Valorizando as Culturas: Minha escola é trilíngue”.

A escola foi uma das vencedoras do Prêmio Referência em Gestão Escolar Delacir de Melo Lima 2019, promovido pela Prefeitura de Boa Vista e que reconhece o esforço dos servidores municipais a desenvolverem práticas pedagógicas com êxito na aprendizagem dos alunos. Todos os servidores – do porteiro ao gestor – das escolas vencedoras recebem premiação em dinheiro equivalente a uma remuneração mensal, chamado de 14º salário. Em 2017 e 2018, a escola também foi premiada.

Outra unidade reconhecida pelo Prêmio Delacir é a Escola Waldinete de Carvalho Chaves, que atende alunos de dois a cinco anos. Ali, são desenvolvidos projetos como o “De Mãos Dadas”, iniciado em 2018 e que estimula a interação entre alunos e a doação de roupas e alimentos aos mais necessitados. A iniciativa surgiu após a direção da escola diagnosticar uma rejeição aos alunos venezuelanos.

“A gente achou importante fazer o projeto não só com as crianças, mas com os pais também. Tive caso de pai brasileiro não aceitar aluno venezuelano. Promovemos palestras e diálogo com os pais para que aceitassem. Hoje existe uma relação de respeito, amizade e companheirismo. Realmente houve uma socialização entre eles”, orgulha-se a gestora Suely Regina Coelho Morales.

“De Mãos Dadas”, assim como outros projetos que exploram a ludicidade dos alunos na Escola Waldinete, é construído pelos funcionários, sem recursos extras da Secretaria de Educação e apenas com a doação dos pais.

 

 

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*Esta reportagem foi financiada pelo Edital de Jornalismo de Educação, uma iniciativa da Jeduca e o Itaú Social.

**Todas as entrevistas foram feitas antes da pandemia do novo coronavírus.

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