Venezuelanos atravessam a fronteira todos os dias em busca de educação no Brasil

Todos os dias, o comerciante Victor Alfonso, de 42 anos, leva a filha para a escola. Tudo normal, não fosse ele ter que atravessar a fronteira Venezuela-Brasil para cumprir uma tarefa simples do cotidiano de um pai. A família mora em Santa Elena de Uairén, e a Karla Victoria estuda em Pacaraima.

A menina, de cinco anos, iniciou a vida escolar na cidade brasileira e atualmente estuda na Escola Municipal Alcides da Conceição Lima. “Um dos motivos pelo qual eu a trouxe para estudar no Brasil é porque não consegui vaga em Santa Elena, devido a situação do país neste processo que estamos atravessando”, explicou o pai, referindo-se a crise política no país natal.

Para garantir os estudos da filha Karla Victoria no Brasil, o comerciante Victor Alfonso dirige cerca de 80 quilômetros por dia (Foto: Vanessa Vieira/Correio do Lavrado)

Para não a deixar sem estudos, ele conta que se viu forçado a matriculá-la no Brasil. “O mais imediato é que não queremos que eles sejam privados da educação. E temos essa opção de matriculá-los no Brasil. Temos recebido muito apoio da escola e especialmente dos professores. O nível é muito bom e, como ela está em uma etapa inicial, é muito fácil se adaptar”, disse Victor, sobre Karla e o filho mais novo, que não está em idade escolar ainda.

O comerciante dirige cerca de 80 quilômetros por dia para garantir à filha o direito à educação. De manhã cedo, a deixa na escola e volta para trabalhar. Por volta das 11h, atravessa a fronteira mais uma vez para buscar a filha. “Combinei com o meu chefe para pagar as horas não trabalhadas nos finais de semana”. Para Victor, seria melhor contratar um transporte privado, mas o medo o impede. “Não há carros adaptados para isso, estão irregulares”.

Os carros a que o comerciante se refere são vans escolares, com placa venezuelana. Muitas transportam mais alunos do que a capacidade permite e cobram a partir de R$ 150 mensais pelo serviço. Este é o valor pago por Anderson José Atencio, de 18 anos, aluno do Colégio Militarizado Cícero Vieira Neto.

Assim como a família de Karla, o adolescente mora em Santa Elena e viaja até à cidade brasileira diariamente para estudar. De fevereiro a maio de 2019, quando o lado venezuelano da fronteira estava fechado, por ordem do presidente Nicolás Maduro, Anderson enfrentou as trochas (rotas clandestinas) a pé para manter em dia os estudos.

“Também participei de um protesto contra os militares da Venezuela. Foi muito difícil. Morreram muitas pessoas naquela época do fechamento da fronteira e, mesmo assim, tínhamos que vir para cá estudar, senão íamos perder o ano”, contou o jovem, que sonha ser empresário e ajudar seu país a ser reconstruído.

Anderson acredita que a educação é um bom caminho para ser uma pessoa melhor. “O estudo é o melhor começo para ser um bom país. Tudo começa na educação. Se não tivermos uma boa educação, não teremos um país melhor”.

 

“Coitadinhos”

Filha de pai brasileiro e mãe venezuelana, Gabriela Olinda Lima Murillo, de 17 anos, estuda no Brasil desde a infância e é mais uma aluna que enfrenta a fronteira todos os dias para ter acesso à educação de qualidade. Nem sempre é simples chegar ao colégio.

“Quando a fronteira foi fechada, meu pai me trazia. Depois de um tempo, minha mãe cogitou mudar para Boa Vista. Meu pai tava procurando uma casa para alugar enquanto eu e minha mãe morávamos na casa de um amigo. Morei aqui [em Pacaraima] um mês e, quando meu pai conseguiu alugar a casa, abriram a fronteira”, contou.

Gabriela Murillo, de 17 anos, enfrentou as rotas clandestinas para chegar à escola em 2019 (Foto: Vanessa Vieira/Correio do Lavrado)

Quando era necessário caminhar pelas trochas, recorda Gabriela, não era tão bom… “Uma vez, minha mãe tava me trazendo e falaram que tava tendo tiroteio lá no Escamoto [base militar venezuelana]. No começo, eles [militares da Guarda Nacional Bolivariana] não queriam deixar os alunos virem estudar. Porém, fizeram uma espécie de acordo com as pessoas que traziam os alunos. Não tem tanto problema quando eles veem que tem aluno, mas às vezes pedem para revistar o carro”.

Uma dessas rotas utilizadas pelos venezuelanos para a travessia clandestina é conhecida como “trilha da Micaraima”, próxima ao hospital, ao quartel da Polícia Militar e à escola municipal. O colégio militarizado fica a alguns quilômetros dali. “Teve uma época que o pessoal do Exército Brasileiro fechou as trochas. Então as pessoas que vinham de carro ficavam depois do marco e os alunos iam caminhando. Nessa época, eu já morava em Pacaraima. Via os alunos caminhando e pensava ‘coitadinhos’”.

 

 

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*Esta reportagem foi financiada pelo Edital de Jornalismo de Educação, uma iniciativa da Jeduca e o Itaú Social.

**Todas as entrevistas foram feitas antes da pandemia do novo coronavírus.

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