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Deslocamento forçado aliado à pandemia contribui para insegurança alimentar infantil

Fugindo da falta de comida e de atendimento médico durante a pandemia, Glenda** migrou da Venezuela para o Brasil no início de 2021. A porta de entrada para a nova vida foi Pacaraima, onde viveu por três meses em uma casa alugada, paga pela mãe com o auxílio financeiro que recebia do governo brasileiro.

O dinheiro logo acabou e a jovem, de 21 anos, foi encaminhada ao Alojamento BV-8, instalação de passagem da Operação Acolhida em Pacaraima, acompanhada dos filhos Gael, de seis anos, Samuel, de três, e Daniel, na época com cinco meses. Desde abril em Boa Vista, a família vive no Abrigo Rondon 1 e espera o momento para ser interiorizada. “Quero fazer um curso e conseguir um emprego para sustentar meus filhos”, diz.

Mulher está sentada em carrinho de bebê. Dois meninos brincam próximos a ela. Ao fundo, Palácio Senador Hélio Campos, sede do Governo estadual
Glenda pede dinheiro em um dos semáforos da Praça do Centro Cívico. O montante que arrecada é enviado para familiares na Venezuela (Foto: Diane Sampaio/Correio do Lavrado)

No abrigo, ela e os filhos recebem alimentação três vezes ao dia. As marmitas – preparadas prioritariamente para adultos – estão longe do ideal de alimentação saudável para crianças em desenvolvimento. “[A marmita] não atende as necessidades das crianças, que começam a rejeitar o alimento e não querem comê-lo. Além disso, não há vínculo afetivo. Para nós, a comida é altamente afetiva. Quando você tá num abrigo e recebe aquela quentinha de alguém gera um afastamento do preparo dos alimentos, que tem um impacto muito grande nas famílias”, avalia Daiana Pena, oficial de Saúde e Nutrição do Unicef em Roraima.

O recomendado, segundo Roberto Jaguaribe Trindade, médico especialista em Medicina da Família e Comunidade, é que, a partir do oitavo mês, a criança tenha acesso a uma alimentação básica, livre de produtos ultraprocessados e industrializados. “Deve-se prestar atenção na qualidade dos alimentos que são oferecidos, sem muito sal, sem temperos industrializados, evitando assim problemas de intoxicação alimentar e doenças diarreicas, uma das principais causas de internação de crianças menores de um ano”.

Antes disso, até o sexto mês, o bebê precisa apenas do leite materno. A partir desse momento, a introdução alimentar deve acontecer de forma lenta e gradual, com papas de frutas e salgadas (contemplando legumes, tubérculos, grãos e carnes). “A criança deve seguir mamando entre as refeições ou no final da noite, em livre demanda, até os dois anos de idade”, reforça o médico.

 

Há condições para amamentar?

E, se em condições ideais, amamentar pode ser um desafio às mães, o esforço é ainda maior quando se tratam de mulheres em deslocamento forçado. María Gabriela, de 17 anos, não conseguiu amamentar a pequena Nicole, de seis meses. Também abrigadas no Rondon 1, mãe e filha recebem a mesma alimentação.

Adolescente carrega bebê no colo. Ao fundo, fachada de loja mostra a palavra "fronteira"
Bebê não bebe leite nem gosta de mingau (Foto: Diane Sampaio/Correio do Lavrado)

Para Daiana Pena, o estresse crônico causado pela migração tem impacto direto na gestação e no bebê. “É um momento que a mulher e o bebê precisam de todo o suporte social disponível. E a mulher que migra perde esse apoio, esses vínculos e ainda tem que lidar com vários questionamentos: quais as condições que essa criança vai nascer e crescer, sem casa, em um abrigo, em um país diferente? São pensamentos que povoam a cabeça dessa mulher e que geram impactos na saúde dela e do bebê”, observa.

Com a finalidade de auxiliar as mulheres nesse momento, o Unicef atua nos abrigos com suplementação nutricional para gestantes e lactantes, além de fazer um trabalho de sensibilização e acompanhamento sobre a importância do aleitamento materno exclusivo até os seis meses de vida do bebê e da introdução à alimentação saudável para crianças de seis a 24 meses.

Quando a equipe de saúde identifica uma criança abrigada em processo de desnutrição, ela é incluída em um projeto alimentar e recebe uma comida com valor nutricional adequado às necessidades. O parceiro do Unicef nesse projeto é a Agência Humanitária da Igreja Adventista (ADRA), que atende cerca de 120 crianças, fornecendo almoço e jantar.

Outra iniciativa voltada ao combate de carências nutricionais de crianças abrigadas é o NutriSUS, que consiste na adição de uma mistura de vitaminas e minerais em pó em uma das refeições diárias oferecidas a meninas e meninos de até cinco anos. Esses micronutrientes, administrados em ciclos de 60 dias, contribuem para a prevenção de déficits nutricionais e para o desenvolvimento de funções cognitivas.

Entretanto, os dois projetos funcionam apenas nos abrigos da Operação Acolhida, não sendo estendido às crianças que vivem em ocupações espontâneas ou em situação de rua. Dados da Organização Internacional para as Migrações indicam que 7% das ocupações espontâneas recebem apoio de distribuição de alimentos para crianças e lactantes.

 

Queda na vacinação

Outro efeito adverso à saúde causado pela pandemia foi a queda na cobertura vacinal de crianças. Dados da Secretaria estadual de Saúde evidenciam que a maioria das taxas de vacinação caiu em 2020 devido à crise sanitária, que gerou receio na população quanto à procura por postos de vacinação.

Além do coronavírus, a rede pública de saúde de Roraima teve que se preocupar com outra doença muito contagiosa: o sarampo, que em 2018 acometeu 366 pacientes. Em março desse ano, a possibilidade de reintrodução e disseminação do vírus no Estado foi sinalizada após a notificação de um caso suspeito no Hospital da Criança Santo Antônio, que foi descartado depois da contraprova.

Esse cenário era previsível. “Quando a pandemia começou, nós recebemos alertas internacionais do que a gente poderia viver de mais grave nas outras questões de saúde pública porque, de repente, todo mundo ficou focado no controle da covid-19. E a vacinação e a nutrição eram bandeiras que a gente poderia reforçar durante esse período”, diz Daiana Pena, do Unicef.

Para auxiliar o sistema de saúde local, o Unicef reforçou as Unidades Básicas de Saúde com a contratação de técnicos de enfermagem para as salas de vacinação e de nutricionistas. “O objetivo, de uma maneira geral, é conseguir que o serviço público dê conta da população, seja de brasileiros ou não”, completa.

Afinal, a vacinação é, acima de tudo, um pacto coletivo. “A vacina nunca deixou de ter a sua importância e é fundamental para que a gente possa controlar ou erradicar algumas doenças, que são deletérias na Primeira Infância, causa de morbidade e deformidade nas nossas crianças. Surto de doenças como o sarampo é algo que já não deveria acontecer. É muito complicado ver pessoas adoecendo e até morrendo por uma doença que é prevenível por vacina”, comenta o médico Roberto Jaguaribe Trindade.



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*Esta reportagem recebeu apoio do programa “Early Childhood Reporting Fellowship: Desigualdade e Covid-19 no Brasil, Venezuela e Colômbia”, do Dart Center for Journalism and Trauma, da Columbia University

**Os nomes foram alterados a pedido dos entrevistados

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