Você deve ter mudado de escola quando era criança, não é? E se lembra do medo em avançar para a 5ª série (atual 6º ano do Ensino Fundamental)? Agora imagina sair de casa, abandonar a escola, atravessar a fronteira e recomeçar a vida, ao lado dos pais, em outro país, em uma nova cultura, em um novo idioma.
É isso que milhares de crianças enfrentam todos os dias depois que os pais decidem sair da Venezuela em busca de uma vida melhor e escolhem o Brasil, mais precisamente Roraima, como destino. O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) estima que mais de 8 mil meninas e meninos venezuelanos em idade escolar vivam essa situação no Estado.
“Estamos falando de famílias que saíram de suas casas sem tempo de recolher nenhum material. Não estou falando de histórico escolar, boletim de notas. Estou falando em certidão de nascimento, documentação básica. Então chegar aqui, num país com outro idioma, com costumes diferentes, comida diferente potencializa o estresse da criança”, relata Raniere Pontes, especialista de Educação em Emergência do Unicef.
E como acolher e integrar essas crianças? Uma das estratégias adotadas pelo Unicef em parceria com a Fraternidade – Federação Humanitária Internacional foi a criação de Espaços de Aprendizagem. Dos 13 abrigos instalados em Roraima, dez possuem esses locais, onde a criança retoma a rotina escolar e é auxiliada na transição para a escola formal.
“Através desses espaços, a gente faz com que as crianças retomem a rotina escolar, de acordar de manhã, se arrumar para ir à escola. São pequenas salas de aula dentro dos abrigos, onde elas têm contato com o português”, exemplificou Pontes. O contato com o português já auxilia na prova de nivelamento, aplicada para fazer a equivalência série-idade.
Isso porque, mesmo sem documento e independente da nacionalidade, as crianças têm direito à educação. “A prova de equivalência é aplicada em português. Então as nossas atividades dentro dos abrigos colaboram para a efetividade do sucesso escolar dessas crianças quando elas fazem a provinha. Nossa taxa de efetividade na virada do ano chegou a quase 100% porque as crianças já estavam acostumadas a ouvir o português”.
E os professores?
O desafio também existe para os professores, que agora ensinam para brasileiros e estrangeiros numa mesma sala de aula. “É claro que existem dificuldades. Estamos falando de aproximadamente 7 mil crianças venezuelanas matriculadas nas redes municipal (de Boa Vista) e estadual de ensino. Numa sala em que 15 dos 20 alunos são venezuelanos, o professor não pode seguir o projeto político-pedagógico desenhado para um público só de brasileiros”, comentou Raniere.
Os desafios enfrentados pelos professores são discutidos durante o II Seminário de Educação “Criança e Adolescente: bem comum – Educação para tempos de emergência”, organizado pelo Unicef e entidades parceiras. “O objetivo é alcançar os professores municipais, estaduais e federais para colaborar com o processo de sensibilização e de capacitação para entendermos o impacto que a migração teve no sistema formal de educação”.
Raniere explicou que o primeiro exercício que o professor deve fazer é se colocar no lugar do aluno migrante: “E se fossemos nós?”. “A intenção é promover empatia, fazer com que o professor entenda as dificuldades daquela menina ou menino venezuelano e que são dificuldades diferentes enfrentadas pelo aluno brasileiro”, apontou.
E os alunos brasileiros?
“[Os alunos] são crianças, são adolescentes. Nós também já fomos e temos que lembrar que existe o bullying, a xenofobia, a aporofobia [aversão a pessoas pobres]. Temos feito campanhas de conscientização para estreitar o relacionamento entre meninos e meninas, brasileiros, venezuelanos e de outras nacionalidades para que se conheçam e criem um ambiente de qualidade. Quanto mais se conhecem, menor é o rechaço, o preconceito”, contou Raniere.
Na visão do especialista de Educação em Emergência, o que está acontecendo em Roraima é uma oportunidade história para a sociedade rever como acolhe, como recebe, como integra pessoas de diferentes localidades, diferentes culturas. “Estamos vivendo uma oportunidade histórica de escrever um novo capítulo da história brasileira. Muita aprendizagem sairá daqui e ajudará no processo de educação do Brasil como um todo”.
Afastando o trauma
A decisão dos pais em migrar nem sempre é comunicada aos filhos, que acordam com as malas já feitas e pegam a estrada, sob sol, sob chuva, passando fome, caminhando muitas horas por dia, dormindo no chão muitas noites. E a chegada ao destino nem sempre significa uma melhoria imediata nas condições de vida.
Embora não vivam em meio a guerras ou catástrofes naturais, o processo de migração pode ser traumático para a criança. Essa é a preocupação de Reinaldo Nascimento, terapeuta social e educador físico da Associação da Pedagogia de Emergência no Brasil. A Pedagogia de Emergência consiste, em linhas gerais, em tratar crianças que passam por situações de risco.
Cheio de histórias na bagagem das intervenções que fez pelo mundo, como no Quênia, nas Filipinas, no Iraque, na Faixa de Gaza e no Nepal, Reinaldo capacita educadores em Roraima para lidar com crianças e adolescentes venezuelanos por meio da arte, dos jogos, da dança, da música…
“No segundo semestre de 2018, fomos chamados para Roraima e trabalhamos com 150 educadores, que hoje atuam nos abrigos. A gente fez com os adultos as brincadeiras que faríamos com as crianças para fazê-los entender como funciona, saber quando a criança precisa de um medicamento ou de carinho”.