A pandemia de covid-19 trouxe impactos profundos na vida de meninos e meninas que estão na Primeira Infância. Mais de um terço da existência dessas crianças se passou no período pandêmico, com consequências diretas e indiretas no desenvolvimento infantil. É o que revela a pesquisa “Desigualdades e impactos da covid-19 na atenção à primeira infância”, lançada pela Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, em parceria com o Itaú Social e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF).
“Diferentes pesquisas apontam potenciais impactos negativos da pandemia na vida da população. A novidade desta publicação é a localização e visibilização da criança pequena nesse contexto. As evidências mostram a importância da Primeira Infância para o presente e futuro de cada indivíduo e o quanto experiências e adversidades vividas nessa fase da vida são cruciais. Os dados e análises específicas das gestantes, crianças de 0 a 6 anos e suas famílias mostram esses efeitos e escancaram desigualdades de cor/raça, nível socioeconômico e regionais na atenção à primeira infância”, avalia Marina Fragata Chicaro, diretora de Conhecimento Aplicado da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal.
Para Marina, o levantamento permite que o gestor público tenha um diagnóstico que ajude a priorizar e planejar as políticas públicas com o compromisso de minimizar os danos, restabelecer direitos e prioridades para essa população. “De posse desse conhecimento, é possível enfrentar estrategicamente os desafios, a fim de superá-los com a urgência e a prioridade absoluta que a primeira infância requer e que está preconizada no nosso ordenamento legal. Um chamado para ação”.
Mortalidade materna
Segundo a pesquisa, o período pandêmico aumentou a mortalidade materna em 89,3% em todo o país, desde 2019 – 53,4% desses óbitos foram por infecção da covid. O estudo aponta que as mulheres pretas apresentaram a maior Razão de Mortalidade Materna (RMM) observada na pesquisa: 194,3 óbitos por 100 mil nascidos vivos em 2021 – 71 mortes a mais na comparação com as mulheres brancas, que foi de 123,2 mortes por 100 mil nascimentos. A RMM das mulheres indígenas foi de 140,2 óbitos por 100 mil nascidos vivos.
“A elevação da mortalidade materna é um problema de saúde pública grave. Cada vida perdida importa enormemente. As consequências para a criança são inúmeras e podem ampliar a situação de vulnerabilidade social a que essas crianças estão expostas”, analisa Marina Chicaro. “Os dados reforçam não só a necessidade de políticas públicas voltadas para a saúde da gestante, como expõem questões estruturais como racismo e as desigualdades históricas que acometem as mulheres negras no Brasil”, finaliza.
Desde 2015, as coberturas vacinais de rotina vinham caindo no Brasil e esse processo se acentuou nos últimos anos. A pesquisa mostra que os dez imunizantes específicos da primeira infância terminaram o ano de 2021 com taxa inferior à registrada em 2019. A BCG, por exemplo, tinha uma cobertura de 86,6%. Em 2021, ela caiu para 68,6%. Já a poliomielite caiu de 84,1% para 69,4%. Em 30% dos municípios consultados no levantamento com os gestores, as famílias deixaram de levar as crianças de até 6 anos aos postos de saúde para tomar uma ou mais vacinas.
Queda de matrículas
As medidas de suspensão das atividades presenciais, necessárias para conter a propagação do vírus, afetaram a dinâmica de matrículas em toda a educação básica, especialmente na educação infantil.
O cálculo das taxas brutas de matrículas (TBM) na creche e na pré-escola no Brasil traduziu em números os enormes prejuízos que a pandemia trouxe ao direito constitucional à educação para as crianças brasileiras.
De 2019 a 2021, houve diminuição de quase 338 mil matrículas nas creches – retração de 2,8 pontos percentuais na TBM. Desse percentual, 2,5 p.p são referentes à rede privada de ensino – mais de 280 mil matrículas perdidas.
O mesmo foi observado na pré-escola, etapa obrigatória, com queda da TBM para 83,7% em 2021. De 2019 a 2021, a retração foi de 4,1 p.p., índice superior ao observado para as creches. Em números absolutos, a redução de matrículas foi de cerca de 315 mil entre 2019 e 2021, sendo 275 mil apenas em 2021.
“A educação infantil é essencial para a progressão e transição para as etapas seguintes do ensino fundamental. Na pandemia, o Brasil foi um dos países com maior número de dias com escolas fechadas e as crianças foram prejudicadas nas oportunidades de aprendizagem e na sua interação com professores e colegas. No pior dos casos, muitas crianças nem cursaram a pré-escola por conta dos desafios impostos pela crise sanitária. Priorizar a educação na primeira infância é fundamental para seu desenvolvimento integral”, explica Esmeralda Correa Macana, especialista em Monitoramento e Avaliação do Itaú Social.
Segundo Esmeralda, as informações do estudo, aliadas com iniciativas de avaliações diagnósticas próprias de cada rede de ensino, são fundamentais na formulação de estratégias que respondam aos desafios elencados e para trazer as crianças de volta à escola, com oportunidades de aprendizagem de qualidade, conforme estipula a Base Nacional Comum Curricular. “É indispensável que os gestores públicos elaborem ações robustas e coesas de busca ativa dessas crianças, ampliem o acesso à educação infantil com qualidade e realizem o monitoramento dessas iniciativas para que o direito constitucional à Educação seja efetivamente garantido”.
Estado nutricional das crianças e outras violações
O estudo “Desigualdades e impactos da covid-19 na atenção à primeira infância” evidencia que a transferência de renda emergencial durante a pandemia foi insuficiente para neutralizar os efeitos do fechamento das escolas – e da consequente falta de merenda escolar – no estado nutricional das crianças de 0 a 5 anos abaixo do peso, mesmo ajudando a atenuá-las.
“A experiência brasileira mostra que esses programas [de transferência de renda] são relevantes em diferentes perspectivas, inclusive no combate à insegurança alimentar. Recompor o poder de compra das famílias e sua capacidade de financiar necessidades básicas de moradia, alimentação, higiene e transporte é medida essencial que pode e deve ser articulada pelos diferentes entes federativos”, defende Marina Fragata Chicaro.
Durante a pandemia, houve, também, impactos na proteção de meninas e meninos contra as violências. Eles estão expressos na redução nas taxas de notificação de casos, que, segundo o estudo, era de 77 por 100 mil crianças por ano no período pré-pandêmico (2016-2019) e caiu para 60,4 a cada 100 mil crianças durante a pandemia (2020-2021) – uma retração da ordem de 23,7%.
“O estudo mostra que as crianças foram as vítimas ocultas da pandemia. Embora elas não tenham sido as mais afetadas diretamente pelo vírus, foram elas que sofreram as maiores consequências da crise provocada por ele. Essas violações de direitos impactaram, principalmente, crianças e famílias negras e indígenas. É fundamental priorizar os direitos das crianças e apoiar as famílias para reverter o cenário atual e dar a elas ferramentas para amortecer os impactos provocados pelo estresse tóxico e conseguir oferecer um ambiente de cuidado integral e integrado para as crianças”, afirma Maíra Souza, Oficial de Primeira Infância do UNICEF no Brasil.
A pesquisa aponta ainda os reflexos da crise econômica na nutrição infantil durante a pandemia. De acordo com os dados, o número de crianças muito abaixo do peso aumentou 54,5% entre março de 2020 e novembro de 2021 (de 1,1% para 1,7%) – índice correspondente a cerca de 324 mil (4,3%) crianças de 0 a 5 anos incompletos.
A inflação atingiu especialmente a alimentação das famílias com crianças de até 6 anos, com um aumento de 63% da cesta de alimentos, enquanto a alta do IPCA de alimentos e bebidas para a população em geral foi de 54% no mesmo período, entre março de 2020 e dezembro de 2021.
Segundo a Pesquisa de Orçamentos das Famílias 2017/2018, as categorias de produto com maior participação na despesa alimentar das famílias com crianças até 6 anos são leites e derivados (14,3% das despesas), panificados (13,2%), bebidas e infusões (11,5%) e carnes (11,4%).
“O levantamento mostra que a pandemia, as escolhas para lidar com ela e as desigualdades históricas vêm provocando efeitos profundos nas crianças, cujos impactos podem ser perpetuados no médio e longo prazo. Nós sabemos da importância dos primeiros anos de vida e de que a ação coordenada do poder público é chave para evitar que os impactos se aprofundem. Garantir o direito de cada criança a atingir o seu pleno potencial é uma agenda de direitos, prioritária também para o desenvolvimento de todo o nosso País”, finaliza a diretora da Fundação.
Metodologia
A pesquisa “Desigualdades e impactos da covid-19 na atenção à primeira infância”, foi realizada pela pela Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, em parceria com o Itaú Social e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Com o apoio da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação – UNDIME e do Colegiado Nacional de Gestores Municipais de Assistência Social – CONGEMAS, a pesquisa abrange um portfólio de estudos com análise de dados secundários, em escala nacional, sobre saúde, educação e aspectos socioeconômicos e tem como principais bases de dados o Ministério da Saúde, o Ministério da Educação (MEC), o IBGE e a Pnad Contínua.
Além disso, um levantamento de dados primários qualitativo e quantitativo foi efetuado entre fevereiro e abril de 2022 pela consultoria Plano CDE. A pesquisa aplicou questionários e entrevistas com gestores públicos e profissionais de secretarias de Saúde, Educação e Assistência Social em municípios das cinco regiões do Brasil para compreender os efeitos, desafios e oportunidades na atenção ofertada à primeira infância no período pandêmico.
No recorte de saúde, gestores de públicos de 100 municípios, em 17 estados, responderam ao questionário, além de 31 entrevistas em profundidade que incluíram também profissionais dos serviços; no socioeconômico, os questionários foram feitos com gestores de 485 cidades das 26 unidades da federação e 33 entrevistas em profundidade entre gestores e profissionais dos serviços de assistência social; já nos aspectos educacionais participaram 391 municípios, em 23 estados, com 37 entrevistas em profundidade com gestores e profissionais.