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Indocumentadas, famílias não têm acesso ao principal programa para a Primeira Infância em Boa Vista

Referência no desenvolvimento de ações voltadas para o início da vida, Boa Vista investe desde 2013 nos cuidados com a Primeira Infância, quando criou o programa Família que Acolhe, política pública integral que cuida da criança desde a gestação até os seis anos, garantindo acesso a saúde, educação e desenvolvimento social.

Em oito anos, o programa já beneficiou mais de 18 mil famílias. Durante a gravidez, as mães participam de encontros quinzenais temáticos, como idade gestacional, importância do pré-natal, dos exercícios físicos e dos vínculos com o bebê ainda na barriga, trabalho de parto e amamentação.

Após o nascimento, os encontros passam a ser voltados ao desenvolvimento da criança e são chamados de Universidade do Bebê. “Isso acontece para que a mãe possa aprender e oferecer estímulos à criança, para que ela se desenvolva de forma saudável e adequada de acordo com a idade”, esclarece a superintendente de Programas e Projetos do Família que Acolhe, Elane Florencio.

Outros benefícios oferecidos às famílias são acompanhamento mensal de saúde, doação de enxoval no nono mês de gestação, doação de três latas de leite por mês a partir do primeiro ano da criança e vaga garantida para crianças nas Casas Mães, como são chamadas as creches em Boa Vista, se a família tiver pelo menos 75% de presença nas atividades da Universidade do Bebê. A partir dos três anos da criança, o acompanhamento da Primeira Infância continua nas Casas Mãe ou nas escolas.

Famílias de baixa renda ou em situação de vulnerabilidade são o público-alvo do programa. A mulher deve estar grávida de até vinte semanas, com exceção das adolescentes de até 19 anos, que podem ingressar no programa em qualquer período gestacional por serem um público vulnerável.

Apesar de não exigir comprovação da renda para a inscrição, é necessário que a pretensa beneficiária apresente RG, CPF, comprovante de residência, cartão do SUS, cartão da gestante e cartão do Bolsa Família, se possuir. Indocumentadas, as migrantes e refugiadas que poderiam ser beneficiadas pelo Família que Acolhe não conseguem acessar o programa.

É o caso de Denise**, de 21 anos, que migrou para reencontrar o filho, de seis anos, que vive no Brasil com a avó desde 2019. “Vim da Venezuela para cá por necessidade. Foi um momento horrível”, relembra a jovem, que estava grávida de um mês quando atravessou a fronteira pelas trochas. A gestação só foi descoberta no Brasil.

Ainda aguardando a regularização migratória, Denise conseguiu atendimento na rede pública de saúde, direito garantido a todos, onde faz o acompanhamento pré-natal e recebe os suplementos nutricionais recomendados. Grávida de três meses e morando em uma ocupação espontânea com o marido, ela diz que nunca ouviu falar no programa Família que Acolhe.

Gestante põe a mão sob a barriga. Na outra mão, segura a caderneta da gestante e vitaminas. Ela está em frente à porta do quarto em que vive
Denise atravessou a fronteira pelas trochas a pé e não sabia que estava grávida (Foto: Diane Sampaio/Correio do Lavrado)

Coordenador do Grupo de Trabalho de Migrações, Apatridia e Refúgio da Defensoria Pública da União, o defensor público federal João Chaves cita um trecho da Lei de Migração, de 2017, “que diz algo muito simples”: Ao migrante é garantida no território nacional, em condição de igualdade com os nacionais, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, bem como é garantido o acesso a serviços públicos de saúde e de assistência social e à previdência social, sem discriminação em razão da nacionalidade e da condição migratória.

“Ou seja, o migrante pode trabalhar sem documentos, a criança tem direito à educação, à saúde. Existe uma dificuldade do Estado brasileiro em encarar essa situação. O acesso à política pública é a porta de entrada para a documentação, para a regularização migratória, não o contrário”, afirma.

Elane Florencio, do Família que Acolhe, garante que o programa atende igualmente todas as famílias, independentemente da nacionalidade. “Claro que o maior público, fora os brasileiros, é de venezuelanos por conta da migração. Mas, para se cadastrar, [a gestante] precisa estar legalizada. Se aparece alguma beneficiária que não possui documentação, encaminhamos para a rede de assistência social fazer o atendimento e orientar para a regularização”, justifica.

O defensor público reconhece que a política pública para a Primeira Infância em Boa Vista é de excelência, mas que é preocupante a existência de pequenas restrições. “É muito assustador que em 2021, num contexto de emergência, de pandemia, com serviços restritos, se crie esse fetiche inexplicável por documentação, quase como se a criança estivesse errada em existir. A gente tem uma tendência de só pensar nos grandes empecilhos. Quando você vai somando os pequenos empecilhos, as ausências, os fluxos não transparentes, você enxerga o grande problema”.

 

Criança Feliz nas carpas

Inspirado no Família que Acolhe, o Criança Feliz – programa de Atenção à Primeira Infância do governo federal –  tem como ponto central a visita semanal de técnicos às casas das famílias de baixa renda para acompanhar e estimular o desenvolvimento das crianças até os três anos de idade.

Para adaptar a estratégia de visitas domiciliares ao contexto dos abrigos, onde mais de uma família mora na mesma carpa (barraca), o Ministério da Cidadania e o Fundo das Nações Unidas para a Infância estão desenvolvendo um projeto piloto do Criança Feliz. A meta é elaborar um modelo de visita que possa ser replicado em outras partes do país e que funcione em qualquer realidade de domicílio.

“Roraima está servindo como uma grande escola de como o Brasil pode adaptar as suas políticas públicas para a Primeira Infância. Daqui podem sair vários bons modelos, várias boas referências, se houver um trabalho articulado”, acredita a chefe do escritório do Unicef em Roraima, Marcela Bonvicini.

Três abrigos da Operação Acolhida participam do projeto piloto: Rondon 1, Rondon 3 e Pintolândia, esse destinado à população indígena warao. “A gente tem muita dificuldade em atuar com as famílias nos abrigos porque estão sob estresse, sob vulnerabilidade e parece que não sobra tempo para o afeto no seio familiar. Com esse projeto, queremos fomentar a parentalidade, tornando esses ambientes mais saudáveis, levando em consideração a diversidade cultural. O que é o cuidado parental para os warao? Você não pode simplesmente importar uma estratégia, que é a visita domiciliar com a mãe e o pai, se o conceito de cuidado daquela comunidade for diferente”, acrescenta.



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*Esta reportagem recebeu apoio do programa “Early Childhood Reporting Fellowship: Desigualdade e Covid-19 no Brasil, Venezuela e Colômbia”, do Dart Center for Journalism and Trauma, da Columbia University

**Os nomes foram alterados a pedido dos entrevistados

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