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Resilientes, crianças investem nas brincadeiras para superar as adversidades

As tardes de domingo são de diversão em Boa Vista. O clima da cidade favorece as brincadeiras ao ar livre. São nesses momentos que meninas e meninos brincam de ser criança, jogando bola, empinando pipa, criando histórias com bonecas, andando de bicicleta, descendo no escorregador ou simplesmente aproveitando a companhia de outras crianças.

Cenas como essas são comuns, seja no quintal de casa, nas praças com parquinhos e esculturas de bichinhos da Selvinha Amazônica, nas ruas ou ainda nas instalações da Operação Acolhida e nas ocupações espontâneas.

Meninos brincam de empinar pipa. Ao fundo, outras crianças brincam juntas, próximas a barracas de campanha
Crianças brincam no alojamento temporário da Operação Acolhida, atrás da Rodoviária Internacional de Boa Vista (Foto: Diane Sampaio/Correio do Lavrado)

Entre barracas de campanha, banheiros químicos e o vaivém de ônibus, 320 crianças e adolescentes venezuelanos vivem no Posto de Recepção e Apoio da Operação Acolhida, instalado nas proximidades da Rodoviária Internacional de Boa Vista. Ali eles aproveitam a infância e brincam juntos.

A realidade é semelhante a de outros 259 crianças e adolescentes que vivem nas 14 ocupações espontâneas listadas pela Organização Internacional para as Migrações (OIM). Em um desses locais, a brincadeira do domingo à tarde é interrompida apenas pelo som do carro de sorvete. “Traga a vasilha”, diz o homem, chamando a atenção de uma dezena de crianças, que logo correm para o meio da rua.

Crianças cercam vendedor de sorvete
Vendedor de sorvete atende clientela infantil (Foto: Diane Sampaio/Correio do Lavrado)

Quarenta e seis famílias dividem o espaço, morando em barracas improvisadas com tapumes, painéis de PVC e telhas, sustentados por algumas paredes de alvenaria. Yutdelis** é a líder da ocupação, mãe de duas jovens de 24 e 28 anos e avó de dez meninos e meninas, com idades que variam de seis meses a 13 anos. “Na Venezuela, a situação era mais complicada do que a que vivemos atualmente”, conta.

Professora no país de origem, Yutdelis se preocupa com o futuro dos netos, que estão fora de sala de aula desde que chegaram ao Brasil há dois anos e meio. “Quero que eles tenham um futuro, que estudem, mas nenhum está na escola”. Sem acesso à educação formal, as crianças aproveitam o tempo juntas e improvisam as brincadeiras, com um velocípede quebrado, um pneu de caminhão ou um balão…

Segundo a Professora Titular de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade na Universidade de São Paulo (USP) e integrante do Comitê Científico do Núcleo Ciência pela Infância (NCPI), Maria Thereza Costa Coelho de Souza, as vulnerabilidades sociais registradas durante o desenvolvimento da criança, especialmente na Primeira Infância, podem deixar marcas profundas. Porém, mesmo quando as condições de vida não são as melhores, mas existem redes de apoio – familiares, adultos significativos e outras crianças – que fornecem aos indivíduos a oportunidade de expressão, de brincar, de conversar, é possível construir uma capacidade de resistir a adversidades, conhecida como resiliência.

“A presença de adultos e de outras crianças é uma condição fundamental para que o desenvolvimento da melhor qualidade possível aconteça, principalmente em contexto de vulnerabilidade social. Sozinha, a criança vai se sentir menos capaz de enfrentar as adversidades”, diz.

Maria Thereza acredita que se a criança conseguir, no meio de um contexto social adverso, brincar com alguém estará promovendo um bom desenvolvimento. “A brincadeira como socialização promove desenvolvimento, ajuda na comunicação, na expressão. Se a criança está triste ou estressada, ela esquece daquilo na hora da brincadeira”.

 

Os adultos têm tempo?

Entretanto, nem sempre os adultos conseguem participar desses momentos. Afinal, num cotidiano cheio de preocupações imediatas, sobra pouco tempo para exercer a parentalidade, primeira rede de apoio da criança.

Maykerly, a filha mais velha de Yutdelis, é mãe de seis crianças. Longe do marido, que viaja para o interior em busca de emprego, ela tenta manter a cabeça no lugar para criar e sustentar os filhos. “Não consigo trabalho, é muito difícil. Faço diária e recolho latinha na rua. Só assim para conseguir dinheiro”, lamenta a jovem, que trabalhava como cabeleireira na Venezuela.

Mãe segura bebê no colo, enquanto a avó calça sandália no pé da menina
Filha mais nova de Maykerly nasceu no Brasil (Foto: Diane Sampaio/Correio do Lavrado)

A rotina em busca de melhores condições de vida é desgastante: pela manhã, alimenta os filhos e arruma o pequeno quarto que chama de casa. Depois sai em busca de trabalho e deixa as crianças mais novas sob a responsabilidade da filha de 13 anos. Quando consegue algum dinheiro, compra comida e volta para casa. De tarde, ela repete o mesmo processo.

“O pouco [dinheiro] que entra em casa é para a comida. Todos os dias são por causa da comida. Não há chance de comprar uma sandália ou outra coisa. Quero ir embora para outro lugar, seguir adiante. Está ficando cada vez mais difícil”, conta Maykerly.

Mesmo lutando diariamente para dar melhores condições de vida aos filhos, ela é criticada pelos vizinhos. “Algumas pessoas me criticam porque eu deixo meus filhos aqui [na ocupação] e saio, mas é a única maneira. Se não tenho dinheiro, como vou sustentar a minha família?”, indaga.

Na impossibilidade ou na ausência dos pais, as redes de apoio da criança são ampliadas, dando lugar a entidades e programas sociais. É o caso do Súper Panas, um dos principais programas do Unicef, que garante aos venezuelanos de três a 18 anos acesso a espaços de recreação, lazer, diversão e aprendizado com segurança e proteção social dentro dos abrigos da Operação Acolhida.

Resta aos seis filhos de Maykerly e às outras dezenas de crianças que vivem fora dos abrigos desenvolver a capacidade de enfrentar as adversidades e recorrer às brincadeiras improvisadas.

Boneca de plástico sob a lama
(Foto: Diane Sampaio/Correio do Lavrado)

 

 

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*Esta reportagem recebeu apoio do programa “Early Childhood Reporting Fellowship: Desigualdade e Covid-19 no Brasil, Venezuela e Colômbia”, do Dart Center for Journalism and Trauma, da Columbia University

**Os nomes foram alterados a pedido dos entrevistados

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